Quem tem meninos pequenos...


Inês

"Quem tem meninos pequenos...

À medida que nos debruçamos sobre as tradições populares, cada vez maior é o respeito e a admiração que nos suscita a sabedoria do povo.
Basta ver a filosofia de vida, ora mordaz ora pedagógica, encerrada nos provérbios; a sensibilidade dos quadros e do romanceiro, a harmonia e engenho da cerâmica e de todas as restantes manifestações do artesanato regional.
Mas, acima de tudo, aquilo que mais nos deslumbra é o alto valor pedagógico das lengalengas (cantilenas ou cantarelos, como também são por vezes designados).
Criação de mães e avós, certamente iletradas, bem longe de saberem que, séculos volvidos, sábios doutores (Freud, Maria Montessori, Claparède, Decroly, Piaget) iriam “descobrir” a importância dessas rimas ingénuas na educação e desenvolvimento afectivo, cognitivo e motor da criança.
Porque de tudo isso se compõe a simples recitação de uma qualquer lengalenga portuguesa, de uma nursery rhime anglo-saxónica, de uma comptime ou formulettede língua francesa, ou de uma cultura europeia, africana, asiática ou americana, que os há em todo o mundo onde haja também crianças e adultos carinhosos que lhas ensinem.
Brinquedos verbais porque a sua sonoridade rítmica e a repetição de fonemas convidam a criança a querer imitá-las, a princípio conseguindo apenas exprimir o som das vogais tónicas, pouco a pouco articulando as palavras mais ou menos correctamente, até obterem a dicção perfeita.
Brinquedo psicomotor, simultaneamente, porque sempre acompanhando as palavras com movimentos de mão, de dedos ou do balanço do corpo.
Das mais elementares constituem as “gracinhas” que fazem o enlevo enternecido de pais e avós; por exemplo, as:

“palminhas olaré palminhas
que a mãezinha dará maminhas
e o pai quando vier
comerá do que trouxer.”

O bebé baterá as mãos sempre que ouvir a sua recitação meio entoada pelo adulto. A:

“Bichinha gata, que comeste tu?
Sopinhas de leite
Onde as guardaste?
Debaixo da arca da cozinha
Sape, sape gata para casa da avozinha.”

Numa primeira infância, o pequeno ouvinte, se não pode ainda apreender toda a sequência de diálogo, afinal uma história com as suas perícias e atores, registará alguns vocábulos familiares - gata, leite, avozinha - mas sobretudo sentirá com agrado a carícia da sua mãozinha na face, e a surpresa divertida do sape, sape, leve “bofetada”, gesto que, rindo, irá por sua vez imitar na cara do adulto.
O grande pedagogo que foi João dos Santos chamava a atenção para a extraordinária potencialidade da conhecidíssima lengalenga

Aqui põe a galinha o ovo, e o (a) menino(a) papa-o todo.

A criança aponta com o indicador direito a palma da mão esquerda, levando esta, de seguida, à boca; excelente exercício de coordenação motora de uma e outra mão.

“Pico, pico, serenico,
quem te deu tamanho bico,
ou de oiro ou de prata.
Esconde a mão neste buraco.”

O toque sucessivo nos dedos, até que a última sílaba decrete que o dedo deve ser dobrado, é outro exercício muito útil de motricidade.
Vai a criança crescendo, e as suas lengalengas podem utilizar-se com outras finalidades: as lengalengas, trava-línguas que exigem um cuidado maior na pronúncia, como por exemplo:

“Por debaixo daquela pipa está uma pita,
quando pinga a pipa, pia a pita

(Pita no falar nordestino tem o significado de galinha; podemos, no entanto, substituía-la por pinta, mais familiar à criança do sul).
Outra:

“Pardal pardo, porque palras?
Palro sempre e palrarei
porque sou pardal pardo, palrador de el-rei.”

Ou então:

“Se a pega papa a fava
porque é que a fava não papa a pega?”

Mais ainda:

“Um, dois, três tigres”

“Copo copo gericopo, gericopo copo cai.
Quem não disser três vezes copo copo gericopo, gericopo copo cai,
desta água não beberá”.

“Vi um ninho de mafagafos com cinco mafagafinhos.
Quando a mãe mafagafa sai e vai ao mar,
ficam os mafagafinhos todos a mafagafar.”

Uma das características das lengalengas populares é o seu humor decorrente do absurdo. “Nonsense stories” dizem os ingleses. Não interessa, pois, a lógica que existe na narrativa de um conto, mas sim o divertimento sonoro que os fonemas articulados proporcionam.
Poderíamos ainda referir as lengalengas de repetição acumulativa ou parlendas, tais como:

“A Formiguinha e a Neve” ou “O Cuco que não gostava de couves”

Nestas pretende-se um treino de memorização, já compatível com outra faixa etária.
Todos estes recursos podem e devem ser utilizados, com bons resultados, também no ensino especial para crianças com problemas de linguagem ou de coordenação motora.
Assim, de geração em geração, recebe-os a preciosa herança de um ensinamento que o povo empiricamente praticou para, afinal, serem atingidos objetivos essenciais ao desenvolvimento harmonioso do ser humano."

Maria Isabel Mendonça Soares in Fontes - Cadernos de Educação de Infância - Jan./Mar. 2004




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